Artigos De 13 a 19 de novembro deste ano, o mundo vai se reunir na sede do Pnuma em Nairóbi (Quênia) para dar continuidade à discussão do Tratado Global Contra a Poluição Plástica (ou, numa versão mais longa, o instrumento internacional juridicamente vinculante sobre poluição plástica, inclusive no ambiente marinho). Será a terceira de quatro sessões de negociação: a primeira ocorreu em Punta del Este em 2022 e a segunda em Paris, já neste ano. De acordo com o relatório do Pnuma de 2022, a melhor estratégia para reduzir a poluição plástica é reduzir os “usos mais problemáticos e desnecessários do plástico” e aumentar a reutilização, a reciclagem, a reorientação e a diversificação”. Isso corresponde a um modelo de economia circular, em que os produtos e materiais não são descartados depois que não for mais possível usá-los – os seus componentes são reaproveitados. A ideia é eliminar a produção e o consumo desnecessários, evitando ou diminuindo impactos negativos na saúde humana e no meio ambiente. As discussões em novembro irão se pautar no “Rascunho Zero” (Documento Unep/PP/INC. 3/4 ), uma minuta elaborada pelo Comitê Intergovernamental de Negociação para facilitar a discussão. Aqui estão algumas das disposições da minuta do tratado. Em suas principais disposições, o Rascunho Zero chama os signatários partes a: – prevenir e mitigar os impactos decorrentes da produção de polímeros plásticos primários; – reduzir a demanda por polímeros plásticos primários, remover subsídios e incentivos fiscais para a sua produção e estabelecer requisitos regulatórios para os produtores; -promover práticas de redução, reutilização, recarga e reparo de plásticos e produtos plásticos, bem como reciclagem segura e ambientalmente correta; – promover a inovação científica e técnica para evitar e capturar a liberação de plásticos, inclusive microplásticos, no ambiente marinho; – cooperar para lidar com o problema do equipamento de pesca perdido ou descartado no mar; – prevenir e eliminar o comércio ilegal de resíduos plásticos. Assim como o Acordo de Paris criou os Planos Nacionais de Adaptação, o Rascunho Zero traz a figura dos “Plano Nacionais”. Cada país deverá então desenvolver e implementar um plano nacional descrevendo como pretende cumprir suas obrigações de acordo com o instrumento, podendo haver a coordenação de planos regionais para facilitar a implementação. Os planos nacionais devem ser revisados, atualizados e comunicados regularmente. Uma grande inovação, se for realmente aprovada, seria o estabelecimento de uma taxa de poluição plástica a ser paga pelos produtores de polímeros plásticos. Mas e os bioplásticos? Bioplásticos ou plásticos de base biológica (em inglês, “bio-based plastics”) são derivados total ou parcialmente de materiais vegetais, como celulose, amido de batata ou milho, cana-de-açúcar, milho e soja, em vez de petróleo ou gás natural. A União Europeia vê os bioplásticos como melhores para o meio ambiente que os plásticos convencionais e como uma possível solução para o problema da acumulação de resíduos plásticos. O Rascunho Zero determina que os signatários deverão incentivar o desenvolvimento e o uso de materiais substitutos ao plástico que sejam sustentáveis e seguros através de instrumentos regulatórios e econômicos, compras públicas e incentivos. Não estão inclusos nessa categoria quaisquer polímeros sintéticos ou à base de combustíveis fósseis, bioplásticos e plásticos biodegradáveis. O rascunho claramente não oferece tratamento mais benéfico aos bioplásticos em relação aos plásticos convencionais. De fato, na atual versão do rascunho, consta que os signatários deverão garantir que os plásticos alternativos e seus e subprodutos são “seguros, ambientalmente corretos e sustentáveis, levando em conta seu potencial de impacto ambiental, econômico, social e na saúde humana, incluindo a segurança alimentar”. Esses são requisitos inclusive mais altos do que os existentes para plásticos em geral. Seguindo taxonomia desenvolvida em discussões na OMC em dezembro de 2022, a categoria de plásticos alternativos pode incluir bioplásticos ou plásticos biodegradáveis, desde que tenham um menor pegada de gases causadores do efeito estufa em seu ciclo de vida que os plásticos convencionais e não ofereçam perigo à flora, à fauna ou à vida humana. Promovendo uma transição justa: a proteção dos meios de subsistência O Rascunho Zero prevê que os signatários devem facilitar uma transição justa, equitativa e inclusiva para as populações afetadas, com consideração especial pelos grupos vulneráveis. Isso inclui: – designar um órgão de coordenação nacional para lidar com as partes interessadas relevantes; – implementar políticas para melhorar a renda, as oportunidades e os meios de subsistência das comunidades afetadas; – incentivar o desenvolvimento de habilidades e oportunidades de trabalho em toda a cadeia de valor do plástico, inclusive na reutilização, reparo, coleta e classificação de resíduos; – garantir um ambiente limpo, saudável e sustentável para as comunidades e os trabalhadores envolvidos na cadeia de valor do plástico; – melhorar as condições de trabalho dos trabalhadores do setor de gestão de resíduos, especialmente aqueles em ambientes informais e cooperativos; – integrar os trabalhadores em ambientes informais e cooperativos em uma cadeia de valor de plásticos segura; – usar uma parte das taxas coletadas por meio de esquemas de EPR (extended producer responsibility) para melhorar a infraestrutura e os meios de subsistência dos trabalhadores do setor de resíduos. Cabe observar que a estratégia da União Europeia para plásticos não fala de uma transição justa para pessoas inseridas nesse setor da economia, embora considere ter “a melhor posição para liderar a transição para os plásticos do futuro”. O objetivo dessa estratégia europeia é claramente impulsionar a inovação e trazer “maior valor agregado e prosperidade na Europa”. Uma transição justa tampouco é uma preocupação para a Diretiva europeia de plástico de uso único (Diretiva da UE 2019/904), embora ela tenha introduzido esquemas de responsabilidade estendida do produtor e proibido a fabricação e importação determinados itens de plástico de uso único. O texto da diretiva sequer cita a existência de partes interessadas. As normativas sobre a transição para uma economia circular dentro da própria União Europeia simplesmente ignoram as pessoas inseridas informalmente na economia do plástico. Assim, a visão da União Europeia de uma transição para “os plásticos do futuro” pode facilmente adquirir um viés que serve ao protecionismo dos países desenvolvidos, ainda mais considerando que a infraestrutura dos países europeus faz que sua população não sofra consequências tão fortes quanto aos problemas globais. Por exemplo: enquanto 92% dos cidadãos do oeste europeu têm acesso a estações de tratamento de esgoto, que removem mais de 92% do microplástico aí despejado, apenas 3% dos cidadãos do continente africano têm acesso a semelhante infraestrutura. E o Brasil? Quando se fala de plásticos, parece que não temos muito o que dizer ao mundo. O Brasil polui muito, e recicla muito pouco. No entanto, é importante que o Brasil seja protagonista nas discussões. Não só para defender os interesses do Brasil, mas também para os de outros países em desenvolvimento. Precisamos de um tratado que possa trazer uma melhora real no combate à poluição, mas sem abandonar as pessoas mais pobres e vulneráveis que estão inseridos na cadeia de valor do plástico. Cabe então rejeitar uma transição que não seja justa e inclusiva para todos os grupos vulneráveis afetados, principalmente o dos catadores de materiais recicláveis e outros trabalhadores da cadeia de valor dos plásticos. Os catadores informais não devem ser prejudicados ou excluídos de fontes importantes de coleta, devem ter acesso a equipamento protetivo e verem questões de gênero contextualizadas e respeitadas. O Brasil voltou a ser relevante nos fóruns internacionais depois de uma era terrível. Com a presidência do Brics “Construindo um Mundo Justo e um Planeta Sustentável”, espera-se que Lula mantenha seu protagonismo em Nairóbi. O Brasil tem o carisma para reunir países em desenvolvimento em torno de propostas que fortaleçam um modelo socialmente mais justo de transição da economia, buscando inclusive o comércio global mais justo, valores esses que são facilmente ignorados ou até considerados indesejáveis por algumas economias mais fortes. (*) Cintia Nunes é advogada com experiência de trabalho em organizações internacionais, duplo LL.M. junto às Universidades de Hamburgo e Rotterdam e project manager da Universidade de Ciências Aplicadas de Hamburgo onde atuou como analista da política da União Europeia para Plásticos.